quarta-feira, 5 de julho de 2017

[Lagoa da Música] Um Caso de Capa e Espada

Um Caso de Capa e Espada

O nascimento de Bagé, dizem, está ligado a um caso de amor.

Todos sabem disso, mas a história certa ainda está por ser contada.

Vamos a ela, que é tarde e vem chuva.

Foi nos tempos das correrias portuguesas e espanholas, em que se procurava acertar onde empeçavam as terras lusitanas e o lugar em que cessava o mando da coroa de Madrid.

Que Nossa Senhora havia botado Nosso Senhor no mundo faziam 1776 anos, mais os andados de tamancos.

Sim, que a história é de amores assim mesmo celestes.

Não vê que era um santo espanhol, meio anjo, meio índio.

– Cruza de anjo espanhol com mãe bugra, quem é?

– São Miguel.

Em vez de auréola, como o comum dos anjos, São Miguel ou São Sepé Tiaraju, como o mais das vezes lhe chamavam, usava na cabeça um cocar de penas de avestruz.

Sob a capa espanhola de forro de veludo, as asas acostumados a cortar, céleres que nem quero-quero, o minuano e o pampeiro.

Um anjo e tanto, vaqueano e valente, guapo e guerreiro.

São Miguel arrastava então a asa em torno de Santa Tecla, rapariga bageense muito relacionada, prendada e disposta.

Bela que era uma alegria. De corpo, era se ver uma garça.

A cara, uma primavera. O resto até nem se fala com medo de pecar.

Mas são coisas que não vêm muito ao caso.

Mas o caso é que naquele tempo outro e também soldado disputava as graças de Santa Tecla ao Anjo Miguel.

– Quem era?

– São Sebastião.

Sim. São Sebastião, soldado romano servindo ao exército português.

Então os dois santos militares começaram a se estranhar e a se olhar atravessado, que nunca se gostar muito se gostavam.

E tanto vai e tanta lambança e tanto leva e traz, que um dia se forma peleia grossa.

– São Miguel, sim.

São Miguel cai o outro a flecha e São Sebastião boleia uma boleadeira, que bicho grande e de asa é assim que se derruba.

E o berzebum começa.

Já Miguel passa a mão numa espada e se atracam.

Ôta bochinche feio.

Lâminas reluzem e olhares fuzilam.

São ponchos que se rasgam e chiripás que se estraçalham no meio do entrevêro.

Saem impropérios em castelhano.

Nomes feios em latim bárbaro.

Desaforos em guarani.

Xingações em português.

O elmo de São Sebastião refulge contra o escudo bem areado de Miguel, e a baita reboldosa termina com Miguel batendo a bota com as asas todas tosadas e as penas coloradas de sangue.

São Sebastião consegue sair vivo, mas fica grudado num umbu pelas setas que lhe atravessaram o couro, desferidas pelo anjo bugre e, além disto, todo pelado, só de tanga.

Tirado dali pelos amigos, tempos depois, já gordo e são de lombo, Sebastião se casa com Santa Tecla.

Deste casamento nasceu Bagé.

Mas o que houve antes disto, ninguém sabe direito.

É que Bagé tem jeito e nome de índio.

*  *  *

Wayne, Pedro R. Lagoa da Música. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1955. 120 p.

[Noites nos Andes] A Nau Diacrônica

A Nau Diacrônica

07
Nauta, nautae
Astronave
Astronauta
O corpo nave
A alma nauta
Cosmonave
Cosmonauta

06
Nauta, nautae
Não nau no espaço
Não nau no nada
Crononave
Crononauta
Crosta do tempo
Rompida

05
Em contagem
Regressiva
Se faz físico
O que é memória
Memória torna
Ao que é matéria
E pedra fica
O que era pó
Toma forma
O que foi fumo
O que era cinza
Cinjo agora

04
Anjo que tange
Sinos e séculos
Singra o céu
Haec erat facies Troiae
So aquestas
Avelaneiras floridas

03
No cosmo
De sóis e caos
Ovo em vôo
No útero alfa

02
No éter eterno
A cronissagem
Em solo pretérito
Da estrela larval

01
A cápsula capta
Em vídeo-tape
Etapa por etapa
Os sete estágios
Do gênesis

00
Os computadores programam
Os módulos e os pólos
E parâmetros
Do juízo final

*  *  *

Degrazia, José Eduardo; et al. Noite nos Andes. Porto Alegre: edições URGS, 1977. 60 p.

[Noite nos Andes] Viagem de Trem pelas Ruas da Cidade

Viagem de Trem pelas Ruas da Cidade

1 - A viagem de ida

Entardecia,
Vinha das ruas,
Ruas antigas,
A carrocinha
De amendoim.
Depois parava
Defronte à praça
Em que eu morava,
Sua estação:
Locomotiva
De duas rodas
Puxada a mão.
E era verde,
Verde e dourada.
Tinha seu sino
Som cristalino.
Apito e fumo
Soltava pela
Chaminezinha.
Só que não tinha,
O trem, vagões.
Ah, tinha sim,
Vagões de vento
Pelas bitolas
Largas das ruas.
Eu embarcava
Nesses vagões,
Feitos de vento
E furacões.
E viajava
Todas as noites
Por ruas raras
De todo o mundo.
Eu, passageiro
Do mundo inteiro.
Nesse comboio
Que se tornou
Um trem noturno
Sigo viagem
Até agora.
Vai na bagagem
Tudo que vejo
Pelas vidraças:
Placas passando
Da Casa Ramos,
Da Casa Lyra,
Casa Krentel,
A Importadora,
A Sedutora,
A Instaladora.
Placas passando
Do Capitólio,
Do Cine Apolo,
Do Coliseu,
Onde eu fazia
A baldeação
Para outro trem,
O Trem Ciclone.
Último trem
Sai de Madri
Para Paris,
Na tela gris
Eu tomo o trem
Que sempre quis.
Vai o Expresso
Xangai-Pequim,
Perto de mim.
Desço do trem.
Da Pola Negri.
Entro de novo
No velho trem
Da carrocinha.
Volto do centro
Às ruas de antes
Até seu fim.

2 - A viagem de volta

Mas nessa volta,
No trem mudou
O que era verde
Pelo que é preto,
Mas o dourado
Permaneceu.
Ficou fumaça
Do que se foi.
Mudou o som,
O som do sino
Que de cristal
Ficou de cobre
Tocando um dobre
Feito de adeus.
Não tem apito,
Mas tem penachos,
Parecem cachos
De anjos de trajos
Roxos e negros.
Eu fico em meu
Vagão de vento,
De vento frio
E nele aguardo
A hora e a vez
Do desembarque
Que quero seja
De madrugada,
O sol nascendo,
Só eu morrendo,
Mas queira Deus
Que o trem atrase.

3 - Da viagem recomeçada

E depois quando,
Quando ventar,
Ventar de novo,
Sou eu que volto,
Volto na névoa,
Vestes de névoa,
Vulto na névoa.
*  *  *

Degrazia, José Eduardo; et al. Noite nos Andes. Porto Alegre: edições URGS, 1977. 60 p.

[Noite nos Andes] Navio Vazio

Navio Vazio

Havio barco, não havia cais;
Havia a chuva, a chuva sim, onde ia
Certo barco ancorado no jamais,
Farol azul num mar que não havia.

Nem existiam sugestões navais,
Nem praia ou proa ou porto, uma gonia
Tão só de barco em meio a temporais;
Barco, porém, depois de pôr-se o dia.

Se alguém entrasse, a sala não mais era,
Era barco, não sala, mas galera
Com altas velas pelo vento acesas.

E alvas velas de neve sobre as mesas
Derretiam-se em torno do pavio,
Qual no vazio as velas do navio.

*  *  *

Degrazia, José Eduardo; et al. Noite nos Andes. Porto Alegre: edições URGS, 1977. 60 p.

Momentos do Modernismo em Bagé

MOMENTOS DO MODERNISMO EM BAGÉ

A PRIMEIRA FASE DO MODERNISMO (1922-1930)

A primeira fase do Modernismo Brasileiro, a que vai de 1922 a 1930, pode ser resumidamente apreciada através das seguintes características:

1 - Renovação do material linguístico em uso na literatura;
2 - utilização do verso livre; 
3 - busca da originalidade a qualquer preço;
4 - valorização da poética do cotidiano;
5 - nacionalismo, valorização do Brasil pré-cabraliano, do índio e do negro;
6 - iconoclastia, anti-passadismo;
7 - predomínio da poesia.

Vamos tentar então a redução de todas essas peculiaridades do Movimento Modernista ao âmbito restrito das letras bageenses.

Os livros de poemas de Pedro R. Wayne (* Salvador-BA, 26 de fevereiro de 1904 - † Bagé-RS, 13 de outubro de 1951), "Versos Meninosos e a Lua" e "Dina", escritos em Bagé, em sua maioria na década de vinte, aparecidos respectivamente em 1931 e 1935, documentam essas tendências modernistas.

1. Renovação do material linguístico

Até o advento do Modernismo ninguém se preocupava com o português falado no Brasil, tudo o que diferia da língua de além-mar, diz A. J. Figueiredo, merecia reparo e censura por ser brasileirismo, termo usado pejorativo pelos gramáticos.

Surge, então, escreve Luiz Carlos Lessa, a ideia da língua brasileira, buscando uma aproximação efetiva entre a língua falada e a língua escrita, buscando uma consagração do vocabulário popular e da sintaxe brasileira. Por outro lado, o Modernismo propugnava pela destruição sistemática das regras cerebrinas dos gramatiqueiros, reagindo assim abertamente contra os exageros puristas de Rui Barbosa, a ditadura gramatical de Cândido de Figueiredo e o classicismo lusitanisante dos parnasianos. A renovação do material linguístico é representada pela utilização de vocabulário popular e pelo emprego da sintaxe brasileira.

Vocabulário popular

"Depois que se inventou - você
todo mundo diz - você
você está ficando chato
e não digo mais-você 
(...)
Você é besta".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 60)

"Senta no piano
marquesa de biscuit
ninho de colibri
peito careca
mulher - paxã
mulher sapeca
boneco de pano tapa-chá".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 32)

"Os miados se misturam safados
gritantes, gostantes, gosados".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 12)

"Burga de biga de portuga".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 28)

"Gargalham cafajas os guizos".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 17)

Todas as palavras grifadas estão arroladas no Pequeno Vocabulário de Termos Populares em "O Modernismo e a Língua Portuguesa", de Luiz Carlos Lessa:

Besta - adj. e s. 2 gên. Tolo; ignorante, prosa, convencido.
Chato - adj. Maçante, aborrecido, importuno.
Careca - adj. s. m. calvo; indivíduo que não tem cabelos.
Sapeca - adj. Desenvolto, desembaraçado, travesso.
Safado - adj. Vil, desonesto, descarado, aborrecido, indigno; obsceno.
Portuga - adj. e s. 2 gên. Português (pejorativo).
Cafajeste - s. m. e adj. Tipo desclassificado; homem sem maneiras, desprezível, de condição inferior.

"Trepou no ar
na mão do nego sarredondou.
- Gargalham cafajas os guizos.
Bate palmadas na palma da mão
e pula pra trás:
Começa o namoro
Os cotuco, as bolinas
do branco ca nega!".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 17)

Sarredondou - há elisão átona e, como na língua falada, sem nenhum registro na escrita.
Ca - ectlipse violenta com + a.
Pra - redução da preposição átona para.

Sintaxe brasileira

"Os cotuco, as bolinas".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 17)

O artigo predominante está no plural e o substantivo determinado no singular, como ocorre normalmente na língua falada informal.

"Voltei a ser criança.
Te encontrei minha fada e meu condão.
(...)
Me vieste com o condão de teu amor".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 7)

Casos de pronome átono no início do período.

"Quando venho para casa
dentro das minhas noites agitadas
tem multidões distantes que me chamam".
(Dina, pág. 7)

Uso de verbo ter em sentido existencial, em lugar de haver.

2. Utilização do verso livre

Os poemas que integram os livros em exame são todos escritos em versos livres. A esse respeito o autor, nas passagens seguintes, já nos previne de sua posição diante do verso tradicional.:

"o bojo redondo reluz
com a chatice mesma da métrica".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 12)

"Está aí uma canção
cantante como fala de nortista
sem o arrimo pretensioso
das rimas pra rimar".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 41)

Convém anotar dos recursos do versilibrismo estudados por OSWALDINO MARQUES e posteriormente aplicados por Luiz Cesar Saraiva Feijó a um livro de poemas de Nauro Machado. Eis algumas consonâncias catadas sem muita dificuldade nas células sonoras dos versos desses primeiros livros do Modernismo em Bagé:

a) coliteração - aliteração com consonantes homorgânicas.

"Bate palmadas na palma da mão".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 17)

b) amplificação - ocorrência em justa posição de duas consonâncias e se repetem elas depois, porém já distanciadas entre si por intervalo vocálico ou mesmo silábico.

"na catedral silenciosa de nosso quarto".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 30)

"pelo ladrilho do marfim".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 32)

"como um jato de luz pela janela aberta".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 42)

"A terra da promissão de meu espírito".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 35)

c) amplificação por variação cognata.

"braços nus, pernas de fora".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 33)

d) diminuição - é o contrário do que se dá na amplificação.

"que soluça em teu colo convulsivo".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 36)

"e só sentia o gosto da terra boa".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 42)

"as pérola vieram em procissão".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 26)

"só sinto o gosto puro da luz".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 43)

"as roupas impregnadas de corpos".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 47)

e) diminuição por variação cognata.

"REPARA como parece nos olhos BREJEIRA".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 47)

f) acróstico - consonâncias dispostas de uma certa forma que se reproduzem no mesmo verso, como por exemplo, o esquema a-b-c c-b-a.

"Como dois sinos do sexo". (Versos Meninosos e a Lua, pág. 21)
 K        D  S       S D     K

g) eco ou ressonância - efeito fonético obtido através de reagrupamento de consonâncias, em geral cognatas, com a repetição da última ou das duas últimas, tipo r-p-m m-p-r-pr.

"repara se as roupas brancas não parecem". (Versos Meninosos e a Lua, pág. 46)
     P R          R   P      R               P

"descem das escadas dos séculos bailarinos". (Versos Meninosos e a Lua, pág. 53)
 D  S              S   D S D   S       S

h) quiasma - arranjo em que os fonemas extremos e medianos são iguais entre si.

"A água do passo corre transparente como gaze".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 37)

"anda a roda, desanda a roda".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 7)

"dentro de minhas noites agitadas".
(Dina, pág. 47)

"queres saber quanto te quero".
(Dina, pág. 10)

"risco como um raio".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 37)

3. Busca da originalidade a qualquer preço

 Essa preocupação da fase heróica do Modernismo transparece em Pedro R. Wayne na

a) invenção de palavras novas

como ocorre no título de seu primeiro livro "Versos MENINOSOS e a Lua". O propósito deliberado da criação de novos vocábulos é confessado nestes versos:

"Não sei se sou poeta
sei que canto enforquilhado
na minhancia de inventar palavras novas".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 52)

"Os boatos, a maledicência,
vestem-se CASACALMENTE aí
(...)
e os garçons no malabarismo
do azafama
AEROPLANIZAM-SE"
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 23)

b) imagística insólita

Algumas imagens realmente sugestivas, como o símile nos versos seguintes:

"meninas balançando os seios soltos
que badalam por dentro dos vestidos
comos dois sinos do sexo".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 21)

e as metáforas enfileiras na passagem abaixo, especialmente a última:

"Cara reatada pelos esparadrapos das rugas.
Da lagoa parada das olheiras
Os olhos chorosos
e o coração lamacento
o firmamento cinzento dos cabelos.
- Solteirona".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 24)

Outras há que não são de inteiro bom gosto:

"Repara como parece no olhar brejeira
aquela combinação cor-de-rosa,
que cochicha bisbilhoreira
com aquela cueca maliciosa,
parecem meninas segredando
recordando... Vá se saber o quê".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 47)

Outras ainda atrevidíssimas, como o claro propósito de contundir e escandalizar:

"Com o colo bamboleando
aos trancos e barrancos
(...)
desentocando zorrilho dos sovacos!"
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 19)

c) regência verbal inusitada - como a do verbo rezar com objeto direto de pessoa, representado por pronome oblíquo no verso.

"me ajoelho e rezo-te".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 62)

4. Valorização da poética do cotidiano 

Como ocorre, entre muitas outras, no passo seguinte:

"A campainha do cinema
feminimamente
teve um ataque de histerismo:
Tritrililim! Tritrililim! Tritrililim!
Chegam os moços de bigodinhos
raquíticos,
como postes paralíticos
estacionam na calçada...
meninas balançando os seios soltos
que badalam por dentro dos vestidos
como dois sinos do sexo,
chegam".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 21)

Curioso efeito de "découpage" produzem os cavalgamentos dos versos esdrúxulos na passados dos moços de bigodinhos. O ritmo evoca, a nosso ver, com muita adequação o andamento dos filmes da década de vinte, de 16 quadros por segundo; enquanto no campo semântico a associação cinema-bigodinho-raquíticos-postes sugere obrigatoriamente Carlitos. Já na cena das meninas as aliterações em b-l (balançando, soltos, badalam) a impressão proporcionada é a de carnes tremulantes e panos ondulando (comparação: em contexto muito diferente a utilização das mesmas consoantes por Castro Alves - para obtenção de efeito de certo modo análogo no segundo verso da penúltima estrofe de "O Navio Negreiro").

5. Nacionalismo, valorização do Brasil pré-cabraliano e do negro

"Me fiz de tacape, ponta de flecha, pontarias e força muscular nos braços dos índios vigorosos".
(Dina, pág. 42-23)

"Nega pichenta
pichaenta.
Teus avós tomaram banho de alcatrão
no Congo
e te soltaram com um cartaz de propaganda
da África e do Brasil".
(Versos Meninosos e a Lua, pág. 18)

6. Iconoclastia e anti-passadismo

Na linha do poema-piada, Pedro R. Wayne satiriza Camões, Casimiro de Abreu e Olavo Bilac, ou seja, de modo geral, todo o passado poesia de nossa língua: o Classicismo, o Romantismo e o Parnasianismo.

Recadinho ao Busto de Camões
Vê se seu Camões
- o que os mouros deixaram pra toda a vida
piscando um olho -
nos cede umas folhinhas
do galho de tempero
que tem em torno da cabeça
que é só para dar um gostinho no feijão
até que o armazém onde teu pai tem livreta
recebe o louro que encomendou.
(Dina, pág. 41)

Para quê?
Para que a poesia indevassável?
Para que, se, por enquanto,
o berreiro do Casemiro
quando se deu conta
que não tinha mais seus oito anos
ainda é é a máxima emoção nacional?
(Inédito)

No Velho Engaste Azul
São Pedro, zelador do firmamento,
vendo uma estrela cadente
bater asas e riscar luminosamente o céu,
grita escandalizado pra Jesus:
- Olha lá uma virgens do Bilac
fugindo de casa com a alma do namorado que morreu!
(Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, 30 de agosto de 1936)

7. Predomínio da poesia

Os dois livros de Pedro R. Wayne que representam a primeira fase do Modernismo em Bagé são livros de poemas.


A SEGUNDA FASE DO MODERNISMO (1930-1945)

A fase também denominada de Pós-Modernismo caracteriza-se:

I - na prosa
a) pelo romance neonaturalista e regionalista;
b) pelo romance psicológico.

II - pela poesia de intenções filosóficas e sociais.

I - A Prosa

a) O romance neoonaturalista e regionalista: Xarqueada, de Pedro R. Wayne.

Mais uma vez as letras bageenses, nessa segunda etapa do Modernismo, fazem eco ao se passa no cenário da literatura nacional.

Patrocinado pela Sociedade Felipe de Oliveira, em 1937, surge "Xarqueada" (Editora Guanabara, Rio). O título do livro, grafado com letra X, foi proposto por Oswald de Andrade e Jorge Amado (ver carta assinada por ambos e datada do Rio, Carnaval de 1935). O primeiro romance de Pedro R. Wayne, respondia no Sul, em Bagé, a novelística social do Nordeste, de Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rêgo. Assinalava "Xarqueada" um marco pionerístico no regionalismo gaúcho, pois, pela primeira vez, despia-se o gaúcho das vestes coloridas que lhe enfiara José de Alencar, e era situado na realidade contemporânea.

Essa importância de "Xarqueada" é proclamada por Athos Damasceno Ferreira: "É preciso fazer justiça a Pedro R. Wayne. Com seu livro publicado em 1937, "Xarqueada", ele iniciou a nova fase do regionalismo. Não se trata de um trabalho precursor. Wayne abriu caminho" (Jornal Folha da Tarde, Porto Alegre, 4 de outubro de 1944).

E Ivan Pedro Martins: "Wayne fez "Xarqueada". Foi como abrir portas de par em par para um mundo novo. O mundo do trabalho, do sofrimento, da miséria, da desgraça e da esperança do pago. A vida diária ganhou grandeza e a obra do pioneiro teve seguidores. Dyonélio Machado, Ciro Martins e outros vieram olhar de perto esse manancial maravilhoso que é a vida gaúcha. Esse é o mérito de Wayne - foi o iniciador de uma corrente literária" (Jornal Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1949).

Após a morte do escritor, em sua homenagem, Danúbio Gonçalves, artista bageense de ressonância internacional, realizaria uma série de gravuras sobre os temas de "Xarqueada".

b) O romance psicológico: Almas Penadas, de Pedro R. Wayne.

Em "Almas Penadas", de Pedro R. Wayne (Irmãos Pongetti, 1942, capa do autor e ilustrações de Carlos Scliar), o cenário é o mesmo de "Xarqueada", a campanha gaúcha, mas, agora, o romance envereda pelas trilhas do mundo interior e a "alma penada" de Hélio é o verdadeiro território o qual se desenrola a história.

II - A Poesia



Clóvis Assumpção representa em Bagé, com seu livro de poemas "As Águas Não Têm Memória" (edição do autor, ilustrações de Carlos Scliar, 1942) a inclinação filosófica e as preocupações sociais do segundo momento do Modernismo.

O livro contém, entre outros, os seguintes poemas que exemplificam essas características.

"Abram as portas
Deixem passar
Os idiotas, os milionários,
Os imbecis, os sábios,
Os leprosos, os santos,
Os cretinos, os tímidos.
Não deixem ninguém encerrado no meio da vida,"

"Houve o grande comício dos deserdados.
E Confúcio falou.
E Cristo falou.
E Sócrates falou.
E os deserdados escutaram.
Ainda outros.
E os deserdados escutaram.
E continuaram irremediavelmente deserdados".

"É melhor que as nossas
Vidas estejam truncadas.
É bem melhor que as nossas vidas
Estejam marcadas.
São Pobres demais
As vidas lisas".

Vale a pena observar, nesse último poema, a utilização funcional do "enjabement", fazendo com que os versos sofram o corte abrupto sempre é mencionada a palavra vida. O ritmo oferece assim uma descontinuidade que se apropria com muita justeza À idéia de existências fragmentadas.

Note-se o emprego idêntico do recurso por Mário de Andrade no poema que começa com os versos "Agora eu quero cantar", estudado detidamente por Nelly Novaes Coelho.


A TERCEIRA FASE DO MODERNISMO (1945-...)

A terceira fase do Modernismo, ita também Neomodernismo, começa em 1945 e vem até os dias atuais.

Caracteriza-se, essa terceira etapa do Modernismo brasileiro, pela procura de uma técnica esmerada e uma exigente preocupação estética pela forma.

Sirvam de amostras desse último momento, em Bagé, um poema de Pedro R. Wayne, de seu livro  "Tropel de Aflições", publicado em 1947 e em um soneto de Camilo Rocha, extraído de seu livro póstumo "A Barca de Tarsis", cuja publicação devemos a dedicação de Wilson Santos e Ernesto Costa.

Poema nº. 2
Não temos mais caminhos,
Não temos mais celebrações,
Caímos na superfície solitária
Das estrelas apagadas.

Houve, de repente, em nossa alma
O toque imperioso do silêncio
E, num só momento, se ausentaram
Todas as manifestações consoladoras.
Não temos mais caminhos,
Não temos mais celebrações,
O nome da morta atinge agora
Toda a extensão de nosso peito.
Somos a cruz que permanece
Num meio devastado
E que a inscrição,
Entre os dois braços tristes
Tem a sua existência definida!
(Tropel de Aflições, Pedro R. Wayne)

Pope, informa-nos Jakobson, dizia aos poetas que o som deve ser um eco do sentido, a que o eminente "poeta da linguística" junta a comunicação de Hymes, segundo a qual a poesia é uma província em que o nexo interno entre o som e o significado se converte de latente em patente e se manifesta da forma mais palpável e intensa.

Seja, por exemplo, a palavra tumba, cujo significado é o de algo enterrado, fechado, preso, recluso e cujo som é constituído por fonemas oclusivos, aqueles em que a corrente de ar fica presa, sepultada dentro da boca.

T, B: consoantes oclusivas. U: vogal oclusiva, pronunciada com a boca quase inteiramente fechada. São consoantes oclusivas: B, T, P, D, K, G.

O poema alude a coisa encerrada, fecha dentro de algo, o coração preso dentro do peito: "O nome da morte atinge agora / Toda a extensão de nosso peito".

Mas o coração do poeta é, por sua vez, uma outro invólucro que traz encerrado dentro de si a moça morta. E um túmulo encimado pelo símbolo fúnebre: "Somos a cruz que permanece".

Essa condição do coração-túmulo, que é o conteúdo do poema, a sua form interna, vem conotada, em sua forma externa, pela presença predominante, em todo ele, de consoantes oclusivas.

Percorre todo o poema uma aliteração em T: temos, solitária, estrela, repente, toque, momento, ausentaram, manifestações, morta, atinge, extensão, peito, devastado, entre, triste, existência, como se a palavra túmulo estivesse presente, amplificada na constante reiteração da consoante inicial ao longo de todos os versos.

Há ainda, na massa fônica do poema, uma dominância de nasais, maioria essa que confere aos aos versos de Pedro R. Wayne aquela mesma "atmosfera abafada, pesada, solene", que Nelly Novaes Coelho constatou diante da idêntica frequência de nasais em um fragmento de "A Meditação Sobre o Tietê" de Mário de Andrade.

Uma observação atenta do Poema nº. 2 de "Tropel de Aflições", constara a curiosa construção em quiasma utilizada por Pedro R. Wayne em dois versos, justamente naqueles em que menciona a cruz ou alude a ela:

"Somos a cruz que permanece
(...)
Entre dois braços tristes"

Ora, o quiasma é justamente uma disposição de fonemas idênticos cruzados, como já vimos.

Somos a cruz que permanece.
S            K     K                 S

Os fonemas extremos idênticos S estão numa posição de perfeita simetria com os medianos idênticos K, guardando entre si as proporções que existem entre a cabeceira e o pé da cruz em relação aos seus braços, numa tentativa de, na posição dos sonhos, sugerir o símbolo mortuário.

A mesma ocorrência no verso:

Entre os dois braços tristes.
    T            S      S         T

Talvez fosse ir muito longe tentar isolar, no poema, uma camada visual, em que a presença permanente da letra T sugeriria uma capa ótica de cruzes povoando o cemitério.

O Grupo de Bagé, verão de 1948.
(da esq. p/ dir., sentados: Jacy Maraschin, Glênio Bianchetti, Danúbio Gonçalves e
Ernesto Wayne; da pé, na mesma ordem: Pedro R. Wayne, Clóvis Assumpção, Ernesto
Costa e Clóvis Chagas. A foto foi batida por Glauco Rodrigues que nela está representado
pelo autorretrato no cavalete.
Após aturada meditação diante da "Meditação ante o Retrato dos Avós", de Camilo Rocha (* Bagé-RS, 2 de julho de 1932 - † Bagé-RS, 4 de agosto de 1958), e depois das lições de Dámaso Alonso e Lazaro Carreter, a partir do triângulo de Hellwag, elaboramos um outro triângulo, esse cromático, em que dispomos as vogais obedecendo ao seguinte posicionamento.


No lado A-É-Ó-I estão representadas as vogais com conotações de claridade e de alegria e no lado Â-Ê-Ô-U as vogais com sugestão de escuridão e tristeza.

De modo geral, portanto:

1. vogais fechadas (-i): escuridão, tristeza.
Sepulcro, urubu, catacumba, morto, tristeza, escuro, urubu, preto, fúnebre, horror, negro, fumo, lúgubre, noite.

2. vogais abertas (+i): claridade, alegria.
Ar, céu, sol, alvo, rosa, jasmim, neve, claro, dia, alegria.

No levantamento da incidência do timbre das vogais nos vocábulos do soneto de Camilo Rocha, consideramos esses fonemas somente em posição tônica, pois, em situação átona, a oposição de timbre se anula.

Grifam-se as sílabas escuras e aparecem em maiúsculas as claras.

Observação: O desequilíbrio parcial verificado no segundo quarteto e no segundo terceto explica-se pela presença neles das palavras riso e soluço, respectivamente.
Temos aí, portanto, um claro-escuro perfeitamente dosado, um exato equilíbrio, um edifício com seus blocos e áreas abertas sabiamente distribuídos, numa rigorosa simetria.

O que não é convincente, porém, é a comparação entre o resultado do levantamento fônico da forma externa e o que nos deixa a forma interna, a proporção igual de alegrias e tristezas, de luzes e sombras, que a seleção das vogais conotaria em contraste com aqueles declarados soluços no último verso.

E há, realmente, um desequilíbrio que dá maioria às vogais escuras e, consequentemente, permite, agora sim, uma justa adequação ente a massa sonora e o conteúdo. Ocorre que há predomínio, na posição tônica privilegiada de fim de verso, de vogais escuras, alta tonicidade essa reforçada pelas rimas. Eis o esquema, em termos de calaras e escuras.

1º quarteto - E-C-E-C
2º quarteto - C-E-C-E
1º terceto - C-E-C
2º terceto - E-E-E

Temos, assim, só agora, uma atmosfera rembrandtiana em torno do retrato dos avós.

Algum senão contábil, acaso existente nestas considerações, fica prevenido com a observação de Wolfgang Kayser: "A análise do estilo não tem o rigor de uma demonstração matemática; para se poder principiar é preciso que haja grande intuição e sensibilidade que se tem que manter durante o trabalho".

Ó Ser Café com Orquestra Triste
Trapézios lunares
Seios sugeridos nevam
Um pensamento passou alto mordendo
Hamletos adormecem bandolins ardentes.
Cacos de olhos
Presença real de Shakespeare
Clowns e colombinas de Picasso em azuis
Em vão doendo
Sementes momentos paralisam
Ladrilhos encarceram tangos
Extraviadas em Deus
Fósforos Roxos
Sumidas figuras
Líquidos desligam realidades
Lascas de pupilas rasgam almas molhadas

Esses pobres versos da longa adolescência situam-nos prontamente no cenário, na atmosfera e no tempo em que foram escritos, há quase vinte e cinco anos passados.

Transportam-nos, de repente, aos velhos cafés da quadra principal da cidade, de desaparecerem soterrados pelos edifícios de muitos andares.

Estamos, talvez, em torno de uma mesa de tampa de mármore, no Café Nacional, nos aos de 1947-48, onde uma comovente orquestra de meninas e luto tocava tangos. Elas estão presentes no poema estavam presentes com todo o seu patético lirismo nas folhas de caderno em que Glauco Rodrigues e Glênio Bianchetti fixavam em inúmeros croquis naquelas antigas noites da cidade.

Glauco, Glênio e Danúbio Gonçalves este relato do Modernismo em nossa terra não poderia deixar de lado os pintores que integraram, em 1948, o grupo dos Novos de Bagé e que estão hoje entre as mais altas figuras da pintura brasileira.

Paga a pena relembrar os lugares em que, sucessivamente, tiveram seus atelieres: na rua Barão do Triunfo, entre a General Netto e a Bento Gonçalves; na chácara da Sra. Stechmann, ao tempo em que José Morais esteve em Bagé, em gozo do Prêmio de Viagem ao País; na rua Barão do Amazonas, nos fundos do Hotel do Comércio; na rua João Manuel; na parte velha da Avenida Sete, no sobrado defronte ao Orfanato São Benedito, onde, dez anos mais tarde, iria morar e escrever seus versos e morrer Camilo Rocha; no Passo do Príncipe, em que Glauco Rodrigues, em esplêndida fase "fauve" pintaria o retrato que desde então nos acompanha:

Soneto de Meu Retrato
Glauco Rodrigues fez este retrato
Me vendo mais por dentro que por fora,
O quadro cada vez fica mais exato:
Quem não era antes vou ficando agora.

Rugas e lágrimas eis que constato
Nesse rosto esfolado de quem chora,
Nessas cores de fogo que, de fato,
São como inferno pela face fora.

Sonhos de estrelas meus fugiram pelos
Mil caminhos grisalhos dos cabelos,
Restam rastros de prata na moldura,

Mas, o que é mais estranho em tal pintura,
É que me ponha a contemplá-la e sinta
Que nos mus olhos nunca seca a tinta.

O atelier da rua João Manuel e o sobrado abaixo da Catedral foram alugados em sociedade com Ernesto Costa que neles residiu à época que foi diretor da Biblioteca Pública Municipal e em que escreveu peças de teatro ("Insônia de uma Noite") e contos ("O Homem Caído", "Flores para o Morto"), alguns deles publicados em jornais de São Paulo, por iniciativa de sua irmã, Edy Lima, outro nome que não pode ser omitido neste apressado sumário das letras modernas bageenses. Embora, se afastasse de Bagé ainda muito moça, aqui nasceu e a presença de sua cidade natal pe uma constante pelo menos nos melhores momentos de sua obra, como é o caso do romance "Minuano" e a peça "A Farsa da Esposa Perfeita", construída à base de recordações de personagens de sua infÂncia, no Bairro do Povo Novo e que lhe valeu o prêmio da melhor peça apresentada em 1959 na capital bandeirante. Edy incursionou com êxito na área da literatura infantil: "A Moedinha Amassada", "O Macaco e o Confeito", "O Menor Anão do Mundo" e "História do Brasil".

E, por falar em literatura infantil, cabe cobrar de Tarcísio Taborda o aparecimento, o quanto antes, da sua "História de Bagé para as Crianças", pronta há muito tempo.

Falamos ainda há pouco da Biblioteca Pública Municipal ao tempo em que era dirigida por Ernesto Costa. Duas figuras então assiduamente a frequentavam: Tarcísio Taborda e Camilo Rocha. Tarcísio, com a colaboração de Ernesto, compila o material que vai reunir a sua bela antologia "A Cidade Sonho"; e Camilo recebe de Ernesto Costa a informação e a orientação literária com que completa o seu talento e lhe permite uma plena realização poética. Para a redação do jornal local, o autor destas linhas leva o cronista esportivo e comentarista política Camilo Rocha e os revisores Vicente Braile e Ramon Wayne, o primeiro autor dos contos "O Homem dos Provérbios" e "A Última Hora" e o segundo, do conto "O Baile dos Jacintos", todos premiados por Paulo Ronai e Aurélio Buarque de Holanda, através do Concurso Permanente de Contos mantido pela revista "A Cigarra", na década de 50.

Neste registro do conto em Bagé, vale mencionar a atividade de Pedro R. Wayne nessa área: "Eu e Ela" (Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, 20 de maio de 1935), "Rio Negro" (revista Para Todos, Rio de Janeiro, segunda quinzena de fevereiro de 1957, com ilustrações de Poty) e "No Porão", o melhor dos três (Saúde em Revista, 8 de setembro de 1950). Em seu livro póstumo, "Lagoa da Música", reúne uma série de lendas locais.

Wilson Afonso com seus versos obtinha prêmios em Concursos de Poesia e Luís Cândido de Campos elaborava longos poemas romântico-parnasianos, exercício que muito lhe valeu, de certo, para a menção honrosa que conseguiu no Concurso de Poesia patrocinado pelo Instituto Nacional do Mate com o livro de poemas "Antônio João de Jesus".

De Nova Iorque, Jaci Maraschin nos mandava poemas acompanhados de partituras musicais.

Dois fatos merecem ainda referência para encerrar este sumário do Modernismo em Bagé: a circulação do jornal que foi porta-voz da estética modernista na Fronteira, o "ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVXYZ" de Pedro R. Wayne, Paulo Thompson Flores, Fernando Borba e Pelayo Perez, aparecido em 1934 e cujo título está sendo aproveitado para o nome do Boletim Cultural do Departamento de Letras da Fundação Universidade de Bagé; e atividade, nos primeiros anos da década de 40, do Teatro em Família, dirigido pela figura idealista de Túlio Lopes, e que lançou, entre outras peças, "Boêmio Triste", de Pedro R. Wayne.


Bibliografia usada para este estudo

Alonso, Dámaso. Poesia Espanhola. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1960.
Alves, Castro. Poesias Completas. 3ª ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1959.
Assumpção, Clóvis. As Águas Não Têm Memória. Porto Alegre: edição do autor, 1942.
Coelho, Nelly Novaes. Mário de Andrade para a Nova Geração. São Paulo: Edição Saraiva, 1970.
Costa, Ernesto. Flores para o Morto. Suplemento do "Diário de São Paulo" de 31 de dezembro de 1952.
Carreter, Fernando Lázaro; Lara, Cecília de. Manual de Explicação de Textos. São Paulo: Editora Centro Universitário, 1963.
Feijó, Luiz César Saraiva. Células Sonoras do Verso Moderno. In: Estudos Filológicos. (Homenagem a Serafim da Silva Neto). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
Jakobson, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.
Kayser, Wolfgang. Análise e Interpretação da Obra Literária. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1967.
Lima, Edy. Minuano. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1959.
Lima, Edy. A Farsa da Esposa Perfeita. In: Revista de Teatro. Rio de Janeio: maio e junho de 1960.
Lessa, Luiz Carlos. O Modernismo Brasileiro e a Linguística Portuguesa. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1966.
Luft, Celso Pedro. Dicionário de Literatura Portuguesa e Brasileira. Porto Alegre: Editora Globo, 1967.
Marques, Oswaldino. Ensaios Escolhidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
Pignatari, Décio. Contracomunicação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
Poyastro, Rebeca. Análise Estilística. In: Boletim do Gabinete Português de Leitura. Porto Alegre, maio de 1965.
Rocha, Camilo. A Barca de Tarsis. Porto Alegre: Secretaria de Educação e Cultura, 1961.
Ribeiro, Joaquim. Estética de Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: J. Ozon Editor, 1964.
Taborda, Tarcísio Antônio Costa. A Cidade Sonho. Bagé: Tipografia Cetuba, 1958.
Wayne, Ernesto. Xarqueada: Vista por Saint Hilaire e Pedro Wayne. Suplemento Literário do Correio do Povo, de 17 de setembro de 1967.
Wayne, Ernesto. Notas sobre Pedro Wayne. In: Anais de Bagé. Museu Dom Diogo de Sousa, 1963.
Wayne, Pedro R. Versos Meninosos e a Lua. Porto Alegre: edição do autor, 1931.
Wayne, Pedro R. Dina. Porto Alegre: edição do autor, 1935.
Wayne, Pedro R. Xarqueada. Rio de Janeiro: editora Guanabara, 1937.
Wayne, Pedro R. Almas Penadas. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1942.
Wayne, Pedro R. A Absoluta Animadora. Porto Alegre: edição do autor, 1943.
Wayne, Pedro R. Tropel de Aflições. Porto Alegre: edição do autor, 1947.
Wayne, Pedro R. Lagoa da Música. Porto Alegre: edição do autor, 1955.

*     *     *

Wayne, Ernesto. Momentos do Modernismo em Bagé. Cadernos de Estudo. Reedição. Bagé: FAT-FUnBa, 1972. p. 11-45

sábado, 1 de julho de 2017

[Extrato de Conta] Apresentação

APRESENTAÇÃO

Em Bagé e arredores, todo mundo conhece o rastro artístico dos Wayne: Pedro Avô – o filósofo. Ernesto – o poeta-professor. Pedro Neto – o ator.

Geração intermediária entre dois Pedros, ERNESTO WAYNE é um cara magicamente obstinado.

Mostrando publicamente este seu denso e belo "EXTRATO DE CONTA", colhido ao longo da vida pelas agências bancárias da emoção, como imprevisível saldo íntimo de vitórias e derrotas, créditos e débitos passionais, indiferente  um tempo de metálica projeção futurista, ele retoma, compulsivamente, a sua mágica e frágil trilha de migalhas de pão. Um levedado, ora jocoso, ora dramático, mas sempre aconchegante pão meridional e caseiro chamado POESIA. Trilha que nenhum pardal conseguiu jamais lhe roubar. E que leva sempre, irremediavelmente, às clareiras da sua (ou da nossa?) infância e juventude.

A bruma das cirandas. O mundo velado de nosso casario protegido, por fora, por portões e altas janelas, povoado, por dentro, pela mobília antiga, paredes rugosas e úmidas, cenário impressionista de convívios do sul. Personagens que conservam um vago ar dramático, tais como afiadores de facas, calceteiros, modistas, consertadores de brinquedos, barmans, damas da noite e bêbados incuráveis. A alegria marota dos meninos antigos no seu atropelo de invernos colegiais. Bolas de meia e natais. Ingênuas devoções. As doutrinas visuais de Hollywood e seus bruxedos, explodindo nas desavisadas telas de Bagé. A noite fronteiriça com suas mesas de bar, sua fusão de virtudes e pecados, seus carteados, seus copetins e tangos portenhos. E, sobretudo, o íntimo complexo, visceral mundo das relações familiares, enfocadas, sempre em estado de graça, sem o ranço da obrigatoriedade genética, como encantado e único refúgio contra as hostilidades do planeta. Estes são alguns de seus temas prediletos. Através deles, ERNESTO WAYNE vai urdindo lembranças e traçando, sem perceber, a crônica poética dos avessos de nossa história provinciana, na sua despojada pobreza material latino-americana, platinizada e terna até as meais recônditas entranhas.

Dono de um substancial poderio verbal, autoridade na tecnologia da criação poética, WAYNE consegue raro malabarismo de alcançar, mestre de mil recursos, um virtuosismo rítmico rigoroso, quase obsessivo e, a um só tempo, a indisciplina íntima decorrente de sua visão das vastidões do homem. E assim ele pode povoar, com a mais despreocupada naturalidade, tanto o abismo interno de linguagem, quanto o espaço sideral sem limites dos seres e suas forças motrizes.

Dificilmente alguém escreverá, na fronteira, um poema mais comoventemente denso, de mais fôlego lírico que "RAMOS DE RAMÓN".

Lançada quando ERNESTO WAYNE está completando 40 oficiais anos de produção poética, segundo artigo publicado, no jornal CORREIO DO SUL, por Augusto Cavalheiro, que focalizava, em 07/09/48 suas inaugurações poéticas, a publicação de "EXTRATO DE CONTA" tem feitio também oficial. Patrocinada pela Prefeitura Municipal de Bagé esta edição comemorativa traz uma proposta: devolver ordenadamente à comunidade o que sempre a ela pertenceu – a febre de criação de ERNESTO WAYNE. Perpetuar esta febre é confirmar e registrar, para a posteridade, o trabalho de um POETA MAIOR.

As cidades têm sempre velhas dívidas com os seus poetas. Porque só eles são capazes de falar sobre elas com a grandiosidade de deuses e a ternura da menina dos anjos.

É justamente isto que ERNESTO WAYNE faz com impressionante competência. Poesia pura. Da mais despojada ousadia. A ousadia de decodificar as gentes e as acontecências de Bagé pela emoção. Essa energia, ao mesmo tempo, tão desvalida e tão poderosa.

Norma Campos de Vasconcellos

*   *   *

Wayne, Ernesto. Extrato de Conta. Bagé: Prefeitura Municipal de Bagé, Diretoria de Cultura, 1988. 162 p.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

[Extrato de Conta] Extrato de Conta

Extrato de Conta

Meu corpo coração tem
Com duas pontes, ramal
Que desvia e passa além

Do estreito e triste canal
Que entupir meu peito vem
De pesares em geral.

Minha alma tem também
Coração, mas esse tal
Vai mal, mal bate, meu bem!

Garranchos do meu final
No eletrocardiograma
Da alma que vai muito mal.

Tão mal que a Velha Dama
A mim, deficiente de alma,
Quer levar, porém reclama

Que relate, antes, com calma
O que fiz de anjo ou de cobra:
– De bem pouco levo a palma,

Pago o que a vida me cobra,
Quitada a dívida, a conta,
Somo e reparto o que sobra:

Obra que não está pronta,
Um que outro amigo disperso
E bens de nenhuma monta.

Do azul licor do universo
Que doido sorvi outrora
Resta um pouco em cada verso.

Do que fui, que fica agora?
– Um resquício, ralo caldo.
Pago os juros de mora,

De saudade tenho um saldo,
Mocidade na memória
Recordação de respaldo:

A minha mulher Vitória,
As minhas sete crianças,
Minha existência ilusória.

Raspo em banco de lembranças
A minha conta-corrente:
Descontadas as cobranças

Disponíveis ao cliente
Rasos créditos escassos
Com que velho me sustente.

Descaminhos de meus passos,
Meus depósitos de ventos,
Meus grosseiros erros carros.

A dor de tantos momentos
Não sei onde começou,
Termina nestes lamentos.

E do que fui, do que sou
Não me sobrou uma estética,
Luta sim, talvez sobrou.

Mais um certo senso de ética
Por sobre o viver diário
Numa visão meio cética.

Contas perdi do rosário,
As que restam arroladas
Vão aqui neste sumário,

Sem ordem, desarrumadas,
Em anos de desengano
A seguir discriminadas:

Me ficam perdas e danos;
Dos raros ganhos nem rasto,
Se dissiparam insanos

Na alma não tenho pro gasto.

*   *   *

Wayne, Ernesto. Extrato de Conta. Bagé: Prefeitura Municipal de Bagé, Diretoria de Cultura, 1988. 162 p.

[Panela do Candal] O Espectro no Espelho

O Espectro no Espelho

Diante do espelho, a mulher retoca a pintura. Nota, preocupada o multiplicar-se de dobras da pele no canto dos olhos. Guarda o batom e sai.

No carro, fica pensando no quanto as sobrancelhas depiladas prejudicam a estética do rosto. Da ligação com Eduardo, talvez fora essa a única coisa que, no fim das contas, resultara proveitosa. Eduardo tinha razão: as sobrancelhas naturais valorizavam-lhe a fisionomia. No espelhinho do táxi, avalia aquelas duas luas negras encorporando-se sobre a sombra de prata das pálpebras da mecha grisalha nos cabelos.

Pensa em Eduardo com uma sensação de alívio e de sossego. O caso com ele, nos últimos tempos, vinha se tornando penoso. Caladão, circunspecto, pouco expansivo, com a mania de fazê-la ler livros enjoados, acabara espantando os amigos com a sua polidez superior e reservada.

Desce num cinema, o filme "A Dama de Xangai". Observa-se no grande espelho da ante-sala. Já não é a mesma dos vinte e cinco anos, um segundo queixo advinha-se sob o primeiro, os óculos escuros disfarçam o empapuçado dos olhos, a pele parece que não acompanha o contorno do rosto como uma fotografia um pouco fora de foco, uma penugenzinha sugere outra sobrancelha sobre a boca.

Já tinha visto o filme. O tiroteio no corredor dos espelhos mágicos do parque de diversões em que Rita Hayworth é atingida, recorda-lhe o tempo, mais de vinte anos, em que vira a fita.

Não espera terminar a sessão. Na toalete, ao tirar o eslaque, vê no espelho as adiposidades de celulite presas nas coxas, babados flácidos pendendo do ventre. Passa as mãos nos seios sub a blusa justa, bem menores do que tempos atrás. Pensa num regime, numas massagens, nuns exercícios que retardem os indícios daquele entardecimento.

Refaz a maquilagem, o gesto de passar os indicadores ao longo das sobrancelhas estava se tornando quase um cacoete. Deveria comer menos, desistir do jantar, mas é incapaz de disciplinar-se, de ter força de vontade, sempre com disposição de comer.

Numa pressa sem razão, faz um lanche rapidíssimo. Ainda lhe restam quatro dias de férias. Acendem-se as luzes nas ruas, há a noite inteira toda pela frente. Aproveitaria para ficar em casa, pôr em ordem uns troços, botar fora outros, limpeza planejada para o começo das férias, e, por preguiça, sempre protelada. Tira o espelho da bolsa, contempla o rosto. Distrai-se nesta contemplação, a ponto de chamar a atenção das pessoas da lancheria. Embaraçada, desiste de corrigir a pintura.

No apartamento, percebe que o despertador não está funcionando. Não importa, está em férias, liberta temporariamente dele e livre de Eduardo. Ordena papéis, examina detidamente fotografias antigas: vestidos compridos de meados da década de cinquenta, e uniformes do colégio com meias soquette, a fantasia de havaiana com flores de papel na cabeça e os tornozelos, a vida cor-de-rosa, você merece confete dourado... a poeira dos guardanapos impregna-lhe o corpo.

Vai para o chuveiro. Uma coisa que a desgostava em Eduardo era a insistência em vê-la no banho, não tanto por pudor, não queria que aquilo a perturbasse, mas não achava direito expor seu corpo naquele começo de decadência, bastava o testemunho do espelho que parara de refletir, no momento em que as carnes nuas tombam no mosaico, o pescoço aberto pela navalha.

Na tarde do dia seguinte, a polícia deparara com a imagem paralisada do homem de bigode rasgando a garganta da mulher com a lâmina de cabe preto coagulada na face do espelho que, ao estampá-la, cessara de retratar outras coisas, como um relógio que tivesse parado.


*  *  *

Corrêa, Orlando de Assis (org.). Panela do Candal: contos. Porto Alegre: Corrêa Martins, 1977. 115 p.

[Panela do Candal] Baile na Ponte da Noite de Chuva

Baile na Ponte da Noite de Chuva

Zé Louco foi o último a sair do boliche em que se posta desde cedo, à espera de que o convidem para um trago, de que lhe paguem outro em troca das histórias que conta, das muitas que sabe e das tantas que presenciou ou inventou. Mas está precisando de outras, novas. Vai ficando no bolicho enquanto pode. O diabo é que todos já conhecem os casos, e daí, não conseguira grande coisa naquela noite: Três doses que nada adiantaram e que só serviram para abrir a vontade de beber toda a canha que existe no mundo, beber de novo toda a cachaça que já bebera, toda a canha que já foi bebida sobre a terra, toda a canha que está por ser posta pela goela do universo abaixo.

Toma o rumo da estrada da ponte. Enquanto anda, chuta o que encontra pela frente, porém o que encontra pela frente quase que são só poças de água, no esburacado do caminho. Chuta igual, chuta a chuva, chuta água que espirra e lhe molha as calças até os joelhos. De brabo, de raiva do magro proveito de seu plantão no bolicho.

Os homens e as mulheres vão chegando, na noite de chuvarada. O acesso ao dormitório é resvaladiço escorregadio. Para chegar a ele sem se estrompar, é preciso dar as mãos uns aos outros ou ir-se segurando nas touceiras de pasto crescidas ao longo do declive que leva até o pedaço de terra onde se levantam os pilares, nos dois lados da cabeceira da ponte.

Estendem os jornais, logo varadas pela umidade; esticam sacos em fiapos que o molhado do chão ensopa em seguida; colocam pedaços de papelão postos a secar durante o dia, mas de que água toma conta num instante. Sentam sobre rasos colchões que lhes molham a bunda. Ficam um tempo assim, depois se esfregam, se coçam, vão-se reclinando, aconchegando, acomodando. Deitam e dormem seus sonos tossidos. As carnes arrepiadas como a quieta superfície do rio eriçada pelas gotas da chuva.

Doido para beber. Adiante de Zé Louco, para lhe aumentar a sede vai o caminhão da empresa distribuidora de bebidas.

O tilintar das garrafas na carroceria parece um riso de vidro debochando de sua gana de cachaça, de sua ânsia de muito trago. O merda do caminhão parece que vai bêbado de tanto uísque que leva nos engradados, nos seus ziguezagues pela estrada embarrada. Borracho e rindo dele, o filho da mãe, com seus pneus deslizando e não conseguindo se firmar direito no leito resvaloso. O caminhão cambaleia da direita para a esquerda, de um lado para outro e, cada vez que se endireita e retoma o equilíbrio, é a provocante gargalhada dos cascos de uísque brindando, fazendo garra de sua vontade de despejá-los para dentro.

Lá de vez em quanto, um se levanta. Bate com os pés no solo para se aquecer. Outro desperta e mais outro e é um ranger de solas no barro, um chapinhamento de sapatos cujas pontas descosidas se abrem como bocas triturando a lama, mascando a goma pegajosa do chão, por entre os dedos dos pés que são como dentes entanguidos nas meias furadas.

Interrompem o exercício para olhar o fecho de luz dos faróis dos carros que vara a ponte e deixa ver o esfarinhado da garoa repartindo a escuridão em duas metades de frio medonho.

Depois adormecem de novo, puxando os lençóis de trapos que o vento teimar em querer retirar.

Na curva fechada, antes de entrar na ponte, o caminhão não se governa mais. Derrapa, capota e vai direto à amurada, rompendo-a num estouro de paus voando para todos os lados. Dá duas cambalhotas entre a ponte e o rio e cai lá dentro, espalhando cacos de vidro no trajeto.

Zé Louco mete os dedos na boca e trila um assovio agudo:

– O caminhão das bebidas caiu no rio!

O ruído da queda dentro da água e os gritos de Zé Louco acordam todos. Zé Louco é o primeiro a imitar o caminhão: de cima da ponte mesmo, de roupa mesmo, prepara o pulo e mergulha. Outros o seguem. Nadam em direção ao ponto em que sobrem as bolhas e se somem rumo ao fundo, direto aos engradados. Passam a mão nas garrafas, entregando-as aos que se dispões em camadas intermediárias, como degraus, entre bebidas submersas e a tona de água.

Festa no dormitório da ponte. Uísque garganta adentro, sem respirar, sem tomar fôlego, gargalos enfiados nas bocas, álcool distendendo as veias, descongelando a carne. Uísque e conhaque sobre os jornais, os sacos, as folhas de papelão. Uísque e ruim sobre o barro e o pasto, sobre a água e as roupas. Os estoques consomem-se em minutos. Novos mergulhos, novas provisões, alguns não voltam do fundo do rio, bebem lá mesmo e dormem de vez por todas.

A sanfona do cego começa o baile. Melhor dançar no cimentado da ponte e sobem todos. Terminou o frio e a umidade, estão quentes por dentro. Galinhas mortas flutuam sobre o rio e já estão sendo assadas. O baile desperta os corpos para o amor sob a chuva e em cada reentrancia do terreno escorre álcool e esperma sobre a lama.

O rio, bêbado também, esparrama-se em enchente e resfolga em ondas que inundam os leitos de pares entrelaçados.

Depois, o grande sono geral até quase meio-dia, quando a polícia aparece à procura dos corpos que a correnteza leva.


*  *  *

Corrêa, Orlando de Assis (org.). Panela do Candal: contos. Porto Alegre: Corrêa Martins, 1977. 115 p.