quinta-feira, 29 de junho de 2017

[Panela do Candal] O Espectro no Espelho

O Espectro no Espelho

Diante do espelho, a mulher retoca a pintura. Nota, preocupada o multiplicar-se de dobras da pele no canto dos olhos. Guarda o batom e sai.

No carro, fica pensando no quanto as sobrancelhas depiladas prejudicam a estética do rosto. Da ligação com Eduardo, talvez fora essa a única coisa que, no fim das contas, resultara proveitosa. Eduardo tinha razão: as sobrancelhas naturais valorizavam-lhe a fisionomia. No espelhinho do táxi, avalia aquelas duas luas negras encorporando-se sobre a sombra de prata das pálpebras da mecha grisalha nos cabelos.

Pensa em Eduardo com uma sensação de alívio e de sossego. O caso com ele, nos últimos tempos, vinha se tornando penoso. Caladão, circunspecto, pouco expansivo, com a mania de fazê-la ler livros enjoados, acabara espantando os amigos com a sua polidez superior e reservada.

Desce num cinema, o filme "A Dama de Xangai". Observa-se no grande espelho da ante-sala. Já não é a mesma dos vinte e cinco anos, um segundo queixo advinha-se sob o primeiro, os óculos escuros disfarçam o empapuçado dos olhos, a pele parece que não acompanha o contorno do rosto como uma fotografia um pouco fora de foco, uma penugenzinha sugere outra sobrancelha sobre a boca.

Já tinha visto o filme. O tiroteio no corredor dos espelhos mágicos do parque de diversões em que Rita Hayworth é atingida, recorda-lhe o tempo, mais de vinte anos, em que vira a fita.

Não espera terminar a sessão. Na toalete, ao tirar o eslaque, vê no espelho as adiposidades de celulite presas nas coxas, babados flácidos pendendo do ventre. Passa as mãos nos seios sub a blusa justa, bem menores do que tempos atrás. Pensa num regime, numas massagens, nuns exercícios que retardem os indícios daquele entardecimento.

Refaz a maquilagem, o gesto de passar os indicadores ao longo das sobrancelhas estava se tornando quase um cacoete. Deveria comer menos, desistir do jantar, mas é incapaz de disciplinar-se, de ter força de vontade, sempre com disposição de comer.

Numa pressa sem razão, faz um lanche rapidíssimo. Ainda lhe restam quatro dias de férias. Acendem-se as luzes nas ruas, há a noite inteira toda pela frente. Aproveitaria para ficar em casa, pôr em ordem uns troços, botar fora outros, limpeza planejada para o começo das férias, e, por preguiça, sempre protelada. Tira o espelho da bolsa, contempla o rosto. Distrai-se nesta contemplação, a ponto de chamar a atenção das pessoas da lancheria. Embaraçada, desiste de corrigir a pintura.

No apartamento, percebe que o despertador não está funcionando. Não importa, está em férias, liberta temporariamente dele e livre de Eduardo. Ordena papéis, examina detidamente fotografias antigas: vestidos compridos de meados da década de cinquenta, e uniformes do colégio com meias soquette, a fantasia de havaiana com flores de papel na cabeça e os tornozelos, a vida cor-de-rosa, você merece confete dourado... a poeira dos guardanapos impregna-lhe o corpo.

Vai para o chuveiro. Uma coisa que a desgostava em Eduardo era a insistência em vê-la no banho, não tanto por pudor, não queria que aquilo a perturbasse, mas não achava direito expor seu corpo naquele começo de decadência, bastava o testemunho do espelho que parara de refletir, no momento em que as carnes nuas tombam no mosaico, o pescoço aberto pela navalha.

Na tarde do dia seguinte, a polícia deparara com a imagem paralisada do homem de bigode rasgando a garganta da mulher com a lâmina de cabe preto coagulada na face do espelho que, ao estampá-la, cessara de retratar outras coisas, como um relógio que tivesse parado.


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Corrêa, Orlando de Assis (org.). Panela do Candal: contos. Porto Alegre: Corrêa Martins, 1977. 115 p.

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