Um Caso de Capa e Espada
O nascimento de Bagé, dizem, está ligado a um caso de amor.
Todos sabem disso, mas a história certa ainda está por ser contada.
Vamos a ela, que é tarde e vem chuva.
Foi nos tempos das correrias portuguesas e espanholas, em que se procurava acertar onde empeçavam as terras lusitanas e o lugar em que cessava o mando da coroa de Madrid.
Que Nossa Senhora havia botado Nosso Senhor no mundo faziam 1776 anos, mais os andados de tamancos.
Sim, que a história é de amores assim mesmo celestes.
Não vê que era um santo espanhol, meio anjo, meio índio.
– Cruza de anjo espanhol com mãe bugra, quem é?
– São Miguel.
Em vez de auréola, como o comum dos anjos, São Miguel ou São Sepé Tiaraju, como o mais das vezes lhe chamavam, usava na cabeça um cocar de penas de avestruz.
Sob a capa espanhola de forro de veludo, as asas acostumados a cortar, céleres que nem quero-quero, o minuano e o pampeiro.
Um anjo e tanto, vaqueano e valente, guapo e guerreiro.
São Miguel arrastava então a asa em torno de Santa Tecla, rapariga bageense muito relacionada, prendada e disposta.
Bela que era uma alegria. De corpo, era se ver uma garça.
A cara, uma primavera. O resto até nem se fala com medo de pecar.
Mas são coisas que não vêm muito ao caso.
Mas o caso é que naquele tempo outro e também soldado disputava as graças de Santa Tecla ao Anjo Miguel.
– Quem era?
– São Sebastião.
Sim. São Sebastião, soldado romano servindo ao exército português.
Então os dois santos militares começaram a se estranhar e a se olhar atravessado, que nunca se gostar muito se gostavam.
E tanto vai e tanta lambança e tanto leva e traz, que um dia se forma peleia grossa.
– São Miguel, sim.
São Miguel cai o outro a flecha e São Sebastião boleia uma boleadeira, que bicho grande e de asa é assim que se derruba.
E o berzebum começa.
Já Miguel passa a mão numa espada e se atracam.
Ôta bochinche feio.
Lâminas reluzem e olhares fuzilam.
São ponchos que se rasgam e chiripás que se estraçalham no meio do entrevêro.
Saem impropérios em castelhano.
Nomes feios em latim bárbaro.
Desaforos em guarani.
Xingações em português.
O elmo de São Sebastião refulge contra o escudo bem areado de Miguel, e a baita reboldosa termina com Miguel batendo a bota com as asas todas tosadas e as penas coloradas de sangue.
São Sebastião consegue sair vivo, mas fica grudado num umbu pelas setas que lhe atravessaram o couro, desferidas pelo anjo bugre e, além disto, todo pelado, só de tanga.
Tirado dali pelos amigos, tempos depois, já gordo e são de lombo, Sebastião se casa com Santa Tecla.
Deste casamento nasceu Bagé.
Mas o que houve antes disto, ninguém sabe direito.
É que Bagé tem jeito e nome de índio.
* * *
Wayne, Pedro R. Lagoa da Música. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1955. 120 p.
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