quarta-feira, 5 de julho de 2017

[Lagoa da Música] Um Caso de Capa e Espada

Um Caso de Capa e Espada

O nascimento de Bagé, dizem, está ligado a um caso de amor.

Todos sabem disso, mas a história certa ainda está por ser contada.

Vamos a ela, que é tarde e vem chuva.

Foi nos tempos das correrias portuguesas e espanholas, em que se procurava acertar onde empeçavam as terras lusitanas e o lugar em que cessava o mando da coroa de Madrid.

Que Nossa Senhora havia botado Nosso Senhor no mundo faziam 1776 anos, mais os andados de tamancos.

Sim, que a história é de amores assim mesmo celestes.

Não vê que era um santo espanhol, meio anjo, meio índio.

– Cruza de anjo espanhol com mãe bugra, quem é?

– São Miguel.

Em vez de auréola, como o comum dos anjos, São Miguel ou São Sepé Tiaraju, como o mais das vezes lhe chamavam, usava na cabeça um cocar de penas de avestruz.

Sob a capa espanhola de forro de veludo, as asas acostumados a cortar, céleres que nem quero-quero, o minuano e o pampeiro.

Um anjo e tanto, vaqueano e valente, guapo e guerreiro.

São Miguel arrastava então a asa em torno de Santa Tecla, rapariga bageense muito relacionada, prendada e disposta.

Bela que era uma alegria. De corpo, era se ver uma garça.

A cara, uma primavera. O resto até nem se fala com medo de pecar.

Mas são coisas que não vêm muito ao caso.

Mas o caso é que naquele tempo outro e também soldado disputava as graças de Santa Tecla ao Anjo Miguel.

– Quem era?

– São Sebastião.

Sim. São Sebastião, soldado romano servindo ao exército português.

Então os dois santos militares começaram a se estranhar e a se olhar atravessado, que nunca se gostar muito se gostavam.

E tanto vai e tanta lambança e tanto leva e traz, que um dia se forma peleia grossa.

– São Miguel, sim.

São Miguel cai o outro a flecha e São Sebastião boleia uma boleadeira, que bicho grande e de asa é assim que se derruba.

E o berzebum começa.

Já Miguel passa a mão numa espada e se atracam.

Ôta bochinche feio.

Lâminas reluzem e olhares fuzilam.

São ponchos que se rasgam e chiripás que se estraçalham no meio do entrevêro.

Saem impropérios em castelhano.

Nomes feios em latim bárbaro.

Desaforos em guarani.

Xingações em português.

O elmo de São Sebastião refulge contra o escudo bem areado de Miguel, e a baita reboldosa termina com Miguel batendo a bota com as asas todas tosadas e as penas coloradas de sangue.

São Sebastião consegue sair vivo, mas fica grudado num umbu pelas setas que lhe atravessaram o couro, desferidas pelo anjo bugre e, além disto, todo pelado, só de tanga.

Tirado dali pelos amigos, tempos depois, já gordo e são de lombo, Sebastião se casa com Santa Tecla.

Deste casamento nasceu Bagé.

Mas o que houve antes disto, ninguém sabe direito.

É que Bagé tem jeito e nome de índio.

*  *  *

Wayne, Pedro R. Lagoa da Música. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1955. 120 p.

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