Baile na Ponte da Noite de Chuva
Zé Louco foi o último a sair do boliche em que se posta desde cedo, à espera de que o convidem para um trago, de que lhe paguem outro em troca das histórias que conta, das muitas que sabe e das tantas que presenciou ou inventou. Mas está precisando de outras, novas. Vai ficando no bolicho enquanto pode. O diabo é que todos já conhecem os casos, e daí, não conseguira grande coisa naquela noite: Três doses que nada adiantaram e que só serviram para abrir a vontade de beber toda a canha que existe no mundo, beber de novo toda a cachaça que já bebera, toda a canha que já foi bebida sobre a terra, toda a canha que está por ser posta pela goela do universo abaixo.
Toma o rumo da estrada da ponte. Enquanto anda, chuta o que encontra pela frente, porém o que encontra pela frente quase que são só poças de água, no esburacado do caminho. Chuta igual, chuta a chuva, chuta água que espirra e lhe molha as calças até os joelhos. De brabo, de raiva do magro proveito de seu plantão no bolicho.
Os homens e as mulheres vão chegando, na noite de chuvarada. O acesso ao dormitório é resvaladiço escorregadio. Para chegar a ele sem se estrompar, é preciso dar as mãos uns aos outros ou ir-se segurando nas touceiras de pasto crescidas ao longo do declive que leva até o pedaço de terra onde se levantam os pilares, nos dois lados da cabeceira da ponte.
Estendem os jornais, logo varadas pela umidade; esticam sacos em fiapos que o molhado do chão ensopa em seguida; colocam pedaços de papelão postos a secar durante o dia, mas de que água toma conta num instante. Sentam sobre rasos colchões que lhes molham a bunda. Ficam um tempo assim, depois se esfregam, se coçam, vão-se reclinando, aconchegando, acomodando. Deitam e dormem seus sonos tossidos. As carnes arrepiadas como a quieta superfície do rio eriçada pelas gotas da chuva.
Doido para beber. Adiante de Zé Louco, para lhe aumentar a sede vai o caminhão da empresa distribuidora de bebidas.
O tilintar das garrafas na carroceria parece um riso de vidro debochando de sua gana de cachaça, de sua ânsia de muito trago. O merda do caminhão parece que vai bêbado de tanto uísque que leva nos engradados, nos seus ziguezagues pela estrada embarrada. Borracho e rindo dele, o filho da mãe, com seus pneus deslizando e não conseguindo se firmar direito no leito resvaloso. O caminhão cambaleia da direita para a esquerda, de um lado para outro e, cada vez que se endireita e retoma o equilíbrio, é a provocante gargalhada dos cascos de uísque brindando, fazendo garra de sua vontade de despejá-los para dentro.
Lá de vez em quanto, um se levanta. Bate com os pés no solo para se aquecer. Outro desperta e mais outro e é um ranger de solas no barro, um chapinhamento de sapatos cujas pontas descosidas se abrem como bocas triturando a lama, mascando a goma pegajosa do chão, por entre os dedos dos pés que são como dentes entanguidos nas meias furadas.
Interrompem o exercício para olhar o fecho de luz dos faróis dos carros que vara a ponte e deixa ver o esfarinhado da garoa repartindo a escuridão em duas metades de frio medonho.
Depois adormecem de novo, puxando os lençóis de trapos que o vento teimar em querer retirar.
Na curva fechada, antes de entrar na ponte, o caminhão não se governa mais. Derrapa, capota e vai direto à amurada, rompendo-a num estouro de paus voando para todos os lados. Dá duas cambalhotas entre a ponte e o rio e cai lá dentro, espalhando cacos de vidro no trajeto.
Zé Louco mete os dedos na boca e trila um assovio agudo:
– O caminhão das bebidas caiu no rio!
O ruído da queda dentro da água e os gritos de Zé Louco acordam todos. Zé Louco é o primeiro a imitar o caminhão: de cima da ponte mesmo, de roupa mesmo, prepara o pulo e mergulha. Outros o seguem. Nadam em direção ao ponto em que sobrem as bolhas e se somem rumo ao fundo, direto aos engradados. Passam a mão nas garrafas, entregando-as aos que se dispões em camadas intermediárias, como degraus, entre bebidas submersas e a tona de água.
Festa no dormitório da ponte. Uísque garganta adentro, sem respirar, sem tomar fôlego, gargalos enfiados nas bocas, álcool distendendo as veias, descongelando a carne. Uísque e conhaque sobre os jornais, os sacos, as folhas de papelão. Uísque e ruim sobre o barro e o pasto, sobre a água e as roupas. Os estoques consomem-se em minutos. Novos mergulhos, novas provisões, alguns não voltam do fundo do rio, bebem lá mesmo e dormem de vez por todas.
A sanfona do cego começa o baile. Melhor dançar no cimentado da ponte e sobem todos. Terminou o frio e a umidade, estão quentes por dentro. Galinhas mortas flutuam sobre o rio e já estão sendo assadas. O baile desperta os corpos para o amor sob a chuva e em cada reentrancia do terreno escorre álcool e esperma sobre a lama.
O rio, bêbado também, esparrama-se em enchente e resfolga em ondas que inundam os leitos de pares entrelaçados.
Depois, o grande sono geral até quase meio-dia, quando a polícia aparece à procura dos corpos que a correnteza leva.
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Corrêa, Orlando de Assis (org.). Panela do Candal: contos. Porto Alegre: Corrêa Martins, 1977. 115 p.