quinta-feira, 29 de junho de 2017

[Extrato de Conta] Extrato de Conta

Extrato de Conta

Meu corpo coração tem
Com duas pontes, ramal
Que desvia e passa além

Do estreito e triste canal
Que entupir meu peito vem
De pesares em geral.

Minha alma tem também
Coração, mas esse tal
Vai mal, mal bate, meu bem!

Garranchos do meu final
No eletrocardiograma
Da alma que vai muito mal.

Tão mal que a Velha Dama
A mim, deficiente de alma,
Quer levar, porém reclama

Que relate, antes, com calma
O que fiz de anjo ou de cobra:
– De bem pouco levo a palma,

Pago o que a vida me cobra,
Quitada a dívida, a conta,
Somo e reparto o que sobra:

Obra que não está pronta,
Um que outro amigo disperso
E bens de nenhuma monta.

Do azul licor do universo
Que doido sorvi outrora
Resta um pouco em cada verso.

Do que fui, que fica agora?
– Um resquício, ralo caldo.
Pago os juros de mora,

De saudade tenho um saldo,
Mocidade na memória
Recordação de respaldo:

A minha mulher Vitória,
As minhas sete crianças,
Minha existência ilusória.

Raspo em banco de lembranças
A minha conta-corrente:
Descontadas as cobranças

Disponíveis ao cliente
Rasos créditos escassos
Com que velho me sustente.

Descaminhos de meus passos,
Meus depósitos de ventos,
Meus grosseiros erros carros.

A dor de tantos momentos
Não sei onde começou,
Termina nestes lamentos.

E do que fui, do que sou
Não me sobrou uma estética,
Luta sim, talvez sobrou.

Mais um certo senso de ética
Por sobre o viver diário
Numa visão meio cética.

Contas perdi do rosário,
As que restam arroladas
Vão aqui neste sumário,

Sem ordem, desarrumadas,
Em anos de desengano
A seguir discriminadas:

Me ficam perdas e danos;
Dos raros ganhos nem rasto,
Se dissiparam insanos

Na alma não tenho pro gasto.

*   *   *

Wayne, Ernesto. Extrato de Conta. Bagé: Prefeitura Municipal de Bagé, Diretoria de Cultura, 1988. 162 p.

[Panela do Candal] O Espectro no Espelho

O Espectro no Espelho

Diante do espelho, a mulher retoca a pintura. Nota, preocupada o multiplicar-se de dobras da pele no canto dos olhos. Guarda o batom e sai.

No carro, fica pensando no quanto as sobrancelhas depiladas prejudicam a estética do rosto. Da ligação com Eduardo, talvez fora essa a única coisa que, no fim das contas, resultara proveitosa. Eduardo tinha razão: as sobrancelhas naturais valorizavam-lhe a fisionomia. No espelhinho do táxi, avalia aquelas duas luas negras encorporando-se sobre a sombra de prata das pálpebras da mecha grisalha nos cabelos.

Pensa em Eduardo com uma sensação de alívio e de sossego. O caso com ele, nos últimos tempos, vinha se tornando penoso. Caladão, circunspecto, pouco expansivo, com a mania de fazê-la ler livros enjoados, acabara espantando os amigos com a sua polidez superior e reservada.

Desce num cinema, o filme "A Dama de Xangai". Observa-se no grande espelho da ante-sala. Já não é a mesma dos vinte e cinco anos, um segundo queixo advinha-se sob o primeiro, os óculos escuros disfarçam o empapuçado dos olhos, a pele parece que não acompanha o contorno do rosto como uma fotografia um pouco fora de foco, uma penugenzinha sugere outra sobrancelha sobre a boca.

Já tinha visto o filme. O tiroteio no corredor dos espelhos mágicos do parque de diversões em que Rita Hayworth é atingida, recorda-lhe o tempo, mais de vinte anos, em que vira a fita.

Não espera terminar a sessão. Na toalete, ao tirar o eslaque, vê no espelho as adiposidades de celulite presas nas coxas, babados flácidos pendendo do ventre. Passa as mãos nos seios sub a blusa justa, bem menores do que tempos atrás. Pensa num regime, numas massagens, nuns exercícios que retardem os indícios daquele entardecimento.

Refaz a maquilagem, o gesto de passar os indicadores ao longo das sobrancelhas estava se tornando quase um cacoete. Deveria comer menos, desistir do jantar, mas é incapaz de disciplinar-se, de ter força de vontade, sempre com disposição de comer.

Numa pressa sem razão, faz um lanche rapidíssimo. Ainda lhe restam quatro dias de férias. Acendem-se as luzes nas ruas, há a noite inteira toda pela frente. Aproveitaria para ficar em casa, pôr em ordem uns troços, botar fora outros, limpeza planejada para o começo das férias, e, por preguiça, sempre protelada. Tira o espelho da bolsa, contempla o rosto. Distrai-se nesta contemplação, a ponto de chamar a atenção das pessoas da lancheria. Embaraçada, desiste de corrigir a pintura.

No apartamento, percebe que o despertador não está funcionando. Não importa, está em férias, liberta temporariamente dele e livre de Eduardo. Ordena papéis, examina detidamente fotografias antigas: vestidos compridos de meados da década de cinquenta, e uniformes do colégio com meias soquette, a fantasia de havaiana com flores de papel na cabeça e os tornozelos, a vida cor-de-rosa, você merece confete dourado... a poeira dos guardanapos impregna-lhe o corpo.

Vai para o chuveiro. Uma coisa que a desgostava em Eduardo era a insistência em vê-la no banho, não tanto por pudor, não queria que aquilo a perturbasse, mas não achava direito expor seu corpo naquele começo de decadência, bastava o testemunho do espelho que parara de refletir, no momento em que as carnes nuas tombam no mosaico, o pescoço aberto pela navalha.

Na tarde do dia seguinte, a polícia deparara com a imagem paralisada do homem de bigode rasgando a garganta da mulher com a lâmina de cabe preto coagulada na face do espelho que, ao estampá-la, cessara de retratar outras coisas, como um relógio que tivesse parado.


*  *  *

Corrêa, Orlando de Assis (org.). Panela do Candal: contos. Porto Alegre: Corrêa Martins, 1977. 115 p.

[Panela do Candal] Baile na Ponte da Noite de Chuva

Baile na Ponte da Noite de Chuva

Zé Louco foi o último a sair do boliche em que se posta desde cedo, à espera de que o convidem para um trago, de que lhe paguem outro em troca das histórias que conta, das muitas que sabe e das tantas que presenciou ou inventou. Mas está precisando de outras, novas. Vai ficando no bolicho enquanto pode. O diabo é que todos já conhecem os casos, e daí, não conseguira grande coisa naquela noite: Três doses que nada adiantaram e que só serviram para abrir a vontade de beber toda a canha que existe no mundo, beber de novo toda a cachaça que já bebera, toda a canha que já foi bebida sobre a terra, toda a canha que está por ser posta pela goela do universo abaixo.

Toma o rumo da estrada da ponte. Enquanto anda, chuta o que encontra pela frente, porém o que encontra pela frente quase que são só poças de água, no esburacado do caminho. Chuta igual, chuta a chuva, chuta água que espirra e lhe molha as calças até os joelhos. De brabo, de raiva do magro proveito de seu plantão no bolicho.

Os homens e as mulheres vão chegando, na noite de chuvarada. O acesso ao dormitório é resvaladiço escorregadio. Para chegar a ele sem se estrompar, é preciso dar as mãos uns aos outros ou ir-se segurando nas touceiras de pasto crescidas ao longo do declive que leva até o pedaço de terra onde se levantam os pilares, nos dois lados da cabeceira da ponte.

Estendem os jornais, logo varadas pela umidade; esticam sacos em fiapos que o molhado do chão ensopa em seguida; colocam pedaços de papelão postos a secar durante o dia, mas de que água toma conta num instante. Sentam sobre rasos colchões que lhes molham a bunda. Ficam um tempo assim, depois se esfregam, se coçam, vão-se reclinando, aconchegando, acomodando. Deitam e dormem seus sonos tossidos. As carnes arrepiadas como a quieta superfície do rio eriçada pelas gotas da chuva.

Doido para beber. Adiante de Zé Louco, para lhe aumentar a sede vai o caminhão da empresa distribuidora de bebidas.

O tilintar das garrafas na carroceria parece um riso de vidro debochando de sua gana de cachaça, de sua ânsia de muito trago. O merda do caminhão parece que vai bêbado de tanto uísque que leva nos engradados, nos seus ziguezagues pela estrada embarrada. Borracho e rindo dele, o filho da mãe, com seus pneus deslizando e não conseguindo se firmar direito no leito resvaloso. O caminhão cambaleia da direita para a esquerda, de um lado para outro e, cada vez que se endireita e retoma o equilíbrio, é a provocante gargalhada dos cascos de uísque brindando, fazendo garra de sua vontade de despejá-los para dentro.

Lá de vez em quanto, um se levanta. Bate com os pés no solo para se aquecer. Outro desperta e mais outro e é um ranger de solas no barro, um chapinhamento de sapatos cujas pontas descosidas se abrem como bocas triturando a lama, mascando a goma pegajosa do chão, por entre os dedos dos pés que são como dentes entanguidos nas meias furadas.

Interrompem o exercício para olhar o fecho de luz dos faróis dos carros que vara a ponte e deixa ver o esfarinhado da garoa repartindo a escuridão em duas metades de frio medonho.

Depois adormecem de novo, puxando os lençóis de trapos que o vento teimar em querer retirar.

Na curva fechada, antes de entrar na ponte, o caminhão não se governa mais. Derrapa, capota e vai direto à amurada, rompendo-a num estouro de paus voando para todos os lados. Dá duas cambalhotas entre a ponte e o rio e cai lá dentro, espalhando cacos de vidro no trajeto.

Zé Louco mete os dedos na boca e trila um assovio agudo:

– O caminhão das bebidas caiu no rio!

O ruído da queda dentro da água e os gritos de Zé Louco acordam todos. Zé Louco é o primeiro a imitar o caminhão: de cima da ponte mesmo, de roupa mesmo, prepara o pulo e mergulha. Outros o seguem. Nadam em direção ao ponto em que sobrem as bolhas e se somem rumo ao fundo, direto aos engradados. Passam a mão nas garrafas, entregando-as aos que se dispões em camadas intermediárias, como degraus, entre bebidas submersas e a tona de água.

Festa no dormitório da ponte. Uísque garganta adentro, sem respirar, sem tomar fôlego, gargalos enfiados nas bocas, álcool distendendo as veias, descongelando a carne. Uísque e conhaque sobre os jornais, os sacos, as folhas de papelão. Uísque e ruim sobre o barro e o pasto, sobre a água e as roupas. Os estoques consomem-se em minutos. Novos mergulhos, novas provisões, alguns não voltam do fundo do rio, bebem lá mesmo e dormem de vez por todas.

A sanfona do cego começa o baile. Melhor dançar no cimentado da ponte e sobem todos. Terminou o frio e a umidade, estão quentes por dentro. Galinhas mortas flutuam sobre o rio e já estão sendo assadas. O baile desperta os corpos para o amor sob a chuva e em cada reentrancia do terreno escorre álcool e esperma sobre a lama.

O rio, bêbado também, esparrama-se em enchente e resfolga em ondas que inundam os leitos de pares entrelaçados.

Depois, o grande sono geral até quase meio-dia, quando a polícia aparece à procura dos corpos que a correnteza leva.


*  *  *

Corrêa, Orlando de Assis (org.). Panela do Candal: contos. Porto Alegre: Corrêa Martins, 1977. 115 p.